Devia ser o disco mais ouvido:
a Quinta Sinfonia, numa gravação
de Klemperer. As manhãs
e as tardes auguravam um futuro
melhor, prendados costumes
que depressa perdi. Já então olhava
para a taberna da Ana,
enchendo a janela do meu quarto.
Tinha medo da sombra, do silêncio,
adivinhando em cada passo o monstro
que me habitava. E lia, para não pensar,
desacreditamos escritores franceses.
Um dia, de tanto o amar,
peguei no disco e quebrei-o
em pequenos pedaços de vinil
- para doerem mais, melhor.
Mantive, não sei bem porquê,
a dura capa de cartão,
essa fúnebre alegria da infância.
E o que sobrou do disco foi parar
ao ribeiro junto à casa dos meus pais.
Mais tarde, o ribeiro com hortas
de domingo à volta foi sufocado pelo terror
de um aldeamento, versão provinciana
de condomínio fechao, num mundo
em que são cada vez mais as portas.
Beethoven, esse, quase deixou
de me comover, soterrado como as rãs
pelas mãos invisíveis de quem mata.
O que me comove, passado tanto
tempo, é perceber que fiz a esse disco
o mesmo que faço e volto a fazer
aos corpos que julgo amar:
parti-los, muito devagar, para
que doam sempre um pouco mais.
Manuel de Freitas
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