quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Diogo - O grande

não morrerei sem me tornar absolutamente
incompreensível.

Rui Nunes

Há um som que espera, cresce,
raro e disperso desde a pesada manhã que nos
apanhou juntos. O sol ainda entra por lá
num desenho inábil,
a luz, aos poucos, sacudindo o assombroso
abandono do que deixámos pelo chão.
Lembro o silêncio que nos criou,
e como nos educámos. Café, cigarros, à espera
das vozes. Um ânimo subtil e a força
das paisagens que tu querias
e eu pude descrever.

Tenho atalhos, a cidade, tenho-a
toda anotada, sei de cor as manias, manhas,
truques, inclinações. Respiram pela minha
boca todas as suas figuras de pedra e passado.

Chego hoje mais cedo ao Café
a oferecer-me para pagar. Reúno pequenas
tripulações, e o mar é essa violência
das escolhas que não fizemos.
Cá estamos, embrutecidos, mudos,
remando no escuro, descompassadamente
e sem qualquer sentido.

Muitas vezes uso só um banco e um jardim,
quieto, calado. Outras, de longe, aceno,
ou agarro um braço por provocação, solto-o
de imediato como se não fosse nada –
não é nada, desculpe –, tem graça
como isso basta e é terrível, inaceitável.
Ou apresento-me, sempre outro e sempre
dou outro nome, quaisquer sons que me
trepem a garganta e se juntem. Isso,
sou eu.

Vale muito e tão pouco o meu tempo.
Tu precisas de bem menos, diferente
assim que acordas. Que olhos e que cor
essa a que chegam. Castanhos, mas tantos,
todos de uma força vagabunda.
Teu espelho sempre minucioso, grave,
e esse gato severo que te quer e me
rejeita de todas as vezes.

Talvez pudesse ter mais no nome,
mais quem se agarrasse a ele pelas noites,
mas prefiro ser só um passageiro, ficar mudo,
no escuro, sentado bem lá ao fundo.
Já o teu nome chega às vezes a ser pouco
para chamar-te, desfaz-se-me na boca
sem nem deixar gosto
e então chamo-te tudo. Vomito
este medonho idioma: gemidos,
bramidos, gritos sufocados; ou
a melodia mínima dos dentes, batendo.
Amaldiçoo o sangue e a hora, faço
da pele uma espera, marco-a sempre
que mais não é possível.

Tenho-me em silêncio, defendido, sou outra
dessas circunstâncias absurdas, tantas vezes
o instante exacto em que as coisas
começaram a correr mal. A ti, tenho-te
medida em segundos, mesmo a
hesitação, sei as frases de que gostas, repito-as,
tiro-lhes tudo.

Carne infeliz esta que no final de cada dia
deito à beira do sonho,
esse corpo quebrado em delicadezas.
E uso a noite, agito-te o sono. Às tantas
acordas sem nome. E o teu quarto
é a reedição, revista e aumentada,
de um desastre antigo. Cansaço. Ao canto
a minha flor escura, chupada, toda ela
de uma lentidão que castiga o olhar.
O ar cai em volta sem compreender, fede.
As sombras, do mesmo tamanho todas,
e de um horror que vem brincar connosco.

Agarro-me, tenho uma ideia, toda a noite
a mesma ideia, baloiçando-se, contando
pulsações. Escrevo-lhes por cima,
aperfeiçoo uma melodia que te destrua.
É fácil abusar silenciosamente
de alguém, mas isto… Pausa a pausa,
dou-te o que quiseres, o tempo todo
para me olhares nos olhos e continuares
sem entender.

Fecho dias em casa, num lúcido estupor,
a luz doseada, alimento a soro
as frágeis impressões do meu exílio.
E gosto disto,
de tudo o que me sai. Sou fácil.
Satisfaço-me, sou sinceramente simples,
e cintilado, sou esta deslocação de um vazio,
um frémito que escreve,

lê. Leio, pior cada vez, cada vez
mais tarde, tão depois de tudo,
e desentendo-me com todos eles,
cada um dos meus autores. Fico ali
meio na provocação, faço-lhes as traduções
mais abusadas. O pior leitor.
Prefiro de longe
quando fraquejam, sempre que foi
por pouco, passo mais com eles aí. Adoro-os
se ficam subitamente
indecisos, e então escolho eu por eles.
E subo-lhes os muros, salto-lhes
para dentro das noites que deixaram
em branco. Cheiro-os. Mijo-lhes as flores,
assusto o gato, jogo, deito, atiro coisas
ao chão, sorrio, ponho-me de lado com a cabeça
a fazer que não.

Sou o outro animal, essa inclinação
maligna, este que chega anos mais tarde,
quando já ninguém esperava, seguindo
o mau cheiro, venho pelo gosto exausto
das coisas, sentir na carne os espantosos
lábios de um moribundo.

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