domingo, 18 de outubro de 2009

Estranho estrangeiro

Vi tudo o que fui, quando fomos, em lampejos oníricos de uma vigília oscilante. Dispunha de poder para entrar e sair do sonho, porque o telefone tocou, e eu alertei-te: “vou atender a realidade, e já volto”. Quando regressei, tu já não estavas. Não sei se o sonambulismo pode ilibar-me, porque julgo que dormia. Procurei-te na agonia terminal dos devaneios interrompidos, como nos tempos em que a porta se abria, de manhã, e a voz rouca da mãe me impunha a escola. Naquele transe indefinido, vivi dentro dos tempos moles de Dali, na agulha inexistente dos segundos, desfeita pela voracidade com que errava entre as horas abismais do sonho que eras, e o tempo indefinido do pesadelo que és.

Tu já não me esperavas, quando regressei à sombra onde nos fundíamos. Na cavidade do sonho, somos omnipotentes, e a única diferença entre nós esteve nos meses que duraram a minha incursão pela realidade. Não deixei de te sonhar, entre as vagas do Atlântico, mas morri afogado quando me pensava suspenso, numa apneia longa. Mataste-me, e eu não percebi. Mas como morri dentro do sonho, pude ressuscitar nele. A tua ausência não me preocupou, e a um morto tudo é permitido. Refiz-te a partir de uma gota de suor que legaste ao meu sepulcro de sonhos, em cuja lápide reescrevo, todos os dias, o teu nome em lágrimas incandescentes. Ao lado da gotícula, encontrei um suspiro teu, exangue, quase ido. Quando o suguei, os ecos do teu adeus trepidaram pelo meu corpo de morto, num “desculpa” soluçante. Fiz amor com o que consegui reconstruir de ti, retirando das minhas mãos todos os teus suores guardados, e da alma todo o ar que te roubei.

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